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Ailton Carmo as Besouro
Um filme com mais de 10 anos, um dos meus filmes brasileiros favoritos, gravado em Lençóis, Bahia, que conta a mítica história de um homem que voava, que faz lembrar história de um super herói. Assim era conhecido o Manuel Henrique Pereira, tendo seu nome de capoeirista Besouro Mangangá. Sua história foi resgatada em uma belíssima peça produzido em 2009 para contar as raízes da resistência negra na Bahia, mais precisamente no Recôncavo, onde Besouro viveu durante o pós Abolição no Brasil.
Conhecido como destemido capoeirista, Besouro conseguiu, juntando as forças ancestrais e as suas habilidades na capoeira, trabalhar para o bem-estar e para a resistência de pessoas negras numa época tão complicada e com tão poucos recursos, num local que já havia sido a mina de ouro do ciclo escravista no Brasil. O filme aborda essa resistência trazendo a figura do ator se apoderando brilhantemente dos ideais, dos mitos e das histórias criadas sobre a história de Besouro para elaborar a figura do personagem, fazendo também uma conexão com as mais profundas raízes trazidas de África. É sabido que no Brasil, especialmente na Bahia, a maioria dos povos escravizados foi trazidos da região da Costa do Benin e da Nigéria, países com grande população Iorubá, que cultiva a religião dedicada aos Orixás. Esse é um aspecto importante durante o filme que mostra como a resistência das forças da natureza, das folhas, das águas e dos metais fizeram de besouro um verdadeiro herói para as pessoas daquela região.
O filme se inicia com uma figura principal um pouco vaidosa e que não liga muito para as conexões na sua comunidade. Inicialmente, Besouro está mais centrado em aprimorar os seus golpes na capoeira e mostrar para todos que ele é o melhor. Há um ancião no filme, um protetor chamado Mestre Alípio, que por conta da sua resistência é sempre avisado pelos capangas na cidade como alguém perigoso e que incentiva rebeliões. As cenas impactantes a partir dos acontecimentos iniciais se desdobram em várias narrativas para os personagens, esse será um momento de grande maturação e frustração para os personagens principais.
Tendo que lidar com arrogância e a violência de homens brancos naquele momento, é sempre uma batalha muito dolorosa simplesmente acordar para tentar ganhar a vida. Uma das formas de distração de diversão, de prática de luta e de socialização em geral era prática da capoeira que tem um papel importantíssimo durante todo o filme. Ela serve de arma, física e psicológica, contra as principais agressões sofridas por aquelas pessoas que estão ainda de alguma maneira tentando conciliar sobrevivência e tradição, visto que em algum momento do filme personagens brancos passam a se valer de estratégias de negociação para tentar fragilizar a união da comunidade, fazem reformas nos mercados e tratam bem a população negra que trabalha nas feiras, o que não passa de uma distração para desmantelar a resistência dos capoeiristas e implantar uma certa dúvida sobre em qual pessoa aquele povo deveria acreditar.
Scene with Besouro and Sergio Laurentino as Exu
A dinâmica da observadas por mim sobre as mulheres, principalmente as que trabalham dentro da Casa Grande falam muito sobre as dimensões do Brasil atual. A violência sexual era um perigo constante para as mulheres negras que além de servir como criadas da casa eram sujeitadas a mais esse tipo de violência que infelizmente moldou e confundiu as relações étnico-raciais no país.
As cenas mais bonitas do filme ficam por conta de dois momentos que relatam duas dimensões da nossa resistência enquanto o povo. A primeira quando a Mãe de Santo cura Besouro, usando as águas do rio e fazendo rituais invocando os deuses do Candomblé para devolver a ele a força para enfrentar mais uma batalha. Ela lhe concede um pingente dedicado à Ogum, orixá das batalhas e guerras, mostrando um dos significantes mitos sobre Besouro, que era um homem de “corpo fechado”, ou seja, nenhuma maldade o poderia atingir. A segunda parte fica por conta da resistência afetiva, no momento que Dinorá, uma das personagens principais, se encontra com Besouro recuperado do seu acidente. Diria que é um uma das cenas mais bonitas do cinema brasileiro. A maneira que eles dançam utilizando a capoeira, se olhando de maneira apaixonada e lentamente incorporando movimentos da capoeira onde seus corpos parecem espelhos prende o seu olhar e por um momento faz esquecer de todo drama envolvido na história, é realmente um momento muito belo.
Besouro finds Dinorá, played by Jéssica Barbosa
Todos os meus avós vieram da região do Recôncavo Baiano, então o filme ressoa em meus pensamentos de maneira muito especial. Durante todo o filme, não conseguia pensar em outro sentimento senão gratidão. Sobre realmente ser agradecida pelos meus ancestrais pela sua resistência que culmina no fato de eu poder estar aqui escrevendo esse texto hoje. Agradecer a todas as mulheres que fizeram banhos de folhas que fizeram orações e que ajudaram na proteção, agradecer a todos os homens que enfrentaram batalhas e o medo da morte buscando um horizonte de resistência. Com as bençãos e ensinamentos de Exu, Oyá e Ossain, o filme é um digno registro da história de Besouro, merece ser assistido, comentado e pensado por todas e todos da Diáspora, como uma forma de conexão e reflexão sobre nossas práticas, nossas sociedades, resistências, vaidades… São muitas camadas para perceber. Deixo aqui o convite para assistir esse maravilhoso filme e tentar desvendar o que é lenda e o que é realidade sobre as histórias. O filme está facilmente acessível online, que com certeza vai te marcar fundo no pensamento e no coração.
Ficha técnica:
Título: Besouro
Ano: 2009
Direção:João Daniel Tikhomiroff
Duração: 94 minutos
Besouro, a Black Man that could fly / Besouro, o homem negro que podia voar
Ailton Carmo as Besouro
Besouro, now over 10 years old and one of my favorite Brazilian films, was recorded in Lençóis, Bahia. The film tells the mythical story of a man who could fly, reminding us of a superhero. That was Manuel Henrique Pereira, also known by his capoeirista* name, Besouro Mangangá. Besouro’s story was recovered in the beautiful piece, produced in 2009, to tell the roots of the Black resistance in Bahia, more precisely in the Recôncavo, where Besouro lived during post-abolition Brazil.
Known as a fearless capoeirista*, Besouro combined ancestral forces with his skills in capoeira, to work for the well-being and resistance of Black people in a complicated era, with little resources, on land that was once a gold mine worked by enslaved Africans in Brazil. The film illustrates Besouro’s resistance, and the myths and stories created about him, through a connection with Brazil’s deepest African roots. It is well known that in Brazil, especially in Bahia, the majority of the enslaved Africans were brought from the coast of modern-day Benin and Nigeria, regions with a large Yoruba population, which inspired the Orixás in Brazilian religions. Through this, the film depicts the resistance of the forces of nature; leaves, water and metals made Besouro a real hero for the people.
The film begins with the introduction of a vain protagonist, who does not care much about the roots of his community. Initially, Besouro is focused on honing his skills in capoeira and proving his dominance to everyone around. As this film progresses, we are introduced to an ancient man called Mestre Alípio, whom because of his resistance is known by the white men in the city as someone dangerous who encourages rebellions. The impactful scenes from the film’s early events unfold in several narratives that unveil a time of great maturation and frustration for the main characters.
Surviving through the arrogance and violence of the environment, and the white men of the era, made simply waking up to try to earn a living a very painful battle. The practice of capoeira as a method of entertainment, fighting and socializing among people, plays a prominent role throughout the film. Capoeira serves as a weapon, physical and psychological, against the aggressions suffered by those people who are working to reconcile survival and tradition. The white characters of the movie deploy “negotiation strategies” to weaken the community’s unity through distractions that dismantle the resistance of the capoeira players and inject uncertainty into the faith of the people.
Scene with Besouro and Sergio Laurentino as Exu
The dynamics I observed regarding women in the film, especially those who work within the Big House, resonate largely with dimensions of present day Brazilian society. Sexual violence was a constant danger to Black women who, in addition to serving as house maids, were subjected to a further type of violence that unfortunately shaped and complicated the ethnic-racial relations of the country today.
The most beautiful scenes in the movie are seen in two moments that represent two dimensions of the resistance of enslaved Africans. The first one is when a Mãe de Santo** heals Besouro, using the waters of the river and performing rituals invoking the Candomblé gods to give him the strength to face another battle. The Mãe de Santo grants him a pendant dedicated to Ogum, the orixá of battles and wars. This scene reveals one of the most significant myths about Besouro, a man with a “closed body”, so that no evil or harm could ever reach him. The second moment recreates the powerfully effective resistance that Dinorá, one of the main characters, meets when Besouro recovers from his accident. I would say it is one of the most beautiful scenes in Brazilian cinema. The way the characters dance using capoeira, passionately looking at each other and slowly incorporating capoeira movements, where their bodies mirror each other, holding your attention and for a moment causing you to forget all the drama and pain involved in the narrative. It is really a very beautiful moment.
Besouro finds Dinorá, played by Jéssica Barbosa
All of my grandparents came from the Recôncavo Baiano region - so the film resonates in my thoughts in a very special way. Throughout the movie, I could think of nothing but gratitude. I couldn’t think of nothing but deep appreciation for my ancestors, for their resistance that culminates in the fact that I can be here writing this piece today. To thank all the women who bathed in the sacred leaves, who prayed and who helped to protect people, to thank all the men who faced battles and the fear of death seeking a horizon of resistance. With the blessings and teachings of orixás Exu, Oyá and Ossain, the film is a worthy record of the history of Besouro. It deserves to be watched throughout the Diaspora as a form of connection and reflection on our practices, our societies, resistances and vanities... There are many layers to perceive. I invite you to watch this wonderful film and try to discover what part is a legend and what is the reality. The film is easily accessible online - it will surely mark your heart and mind.
*Person that plays Capoeira, afrobrazilian dance-martial arts
**Main female figure of Candomblé religion
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